“Sussurros simbólicos” - Kika Goldstein

13.07 - 17.08.2024

ArteFASAM São Paulo

Sussurros simbólicos

Luz e sombra aqui coexistem,

uma depois da outra, uma dependente da outra,

dado o movimento cíclico da natureza

por Flavia Gomes

Perceber a terra como princípio.

Movê-la. Criar montes, morros, vales e aberturas, para então, adentrar.

A terra, fecunda, guarda memória. Uma vez moldada, ela mantém a forma. As camadas que sedimentam com o tempo respeitam a topografia primordial, intensificando suas curvas, saliências, reentrâncias, fendas e fissuras. Camadas são marcações temporais: o relevo em formação é o tempo presente.

Sussurros Simbólicos reflete investigações recentes de Kika Goldstein (n.1984, São Paulo) no campo de produção da imagem, a partir dos primeiros gestos das pinturas rupestres que deságuam nas primeiras linhas, nos primeiros rabiscos, nos primeiros contornos até a criação da linguagem. Para Goldstein, a parede sedimentada das cavernas invoca um gesto de origem: a necessidade de tatear a superfície para sentir o relevo com as mãos ao invés dos olhos. Volumes, veios, rachaduras, ranhuras, rasgos e poros sugerem pontos e linhas, planos e preenchimento, que fazem alusão ao mundo exterior, como se estivessem aguardando serem contempladas pela mão do observador mais atento. A materialidade sentida pela topografia percorrida com as pontas dos dedos dá impulso à produção de imagens, e pelas imagens fazemos sentido do mundo.

As cavernas cederam espaço para a elaboração simbólica de habitantes que ali se abrigavam e se protegiam, ao mesmo tempo em que construíam cosmologias como forma de olhar para o céu e para a natureza que os cercavam. Haveria correlação entre as estrelas e os fenômenos climáticos como seca, vento e chuva? Entre o sol e as estações do ano? Entre a lua e o ciclo de procriação de animais e vegetais? Os traços nas paredes sedimentadas representam assim um balbucio para compreensão do meio e da interrelação de seus elementos vegetal, mineral e animal.

Kika Goldstein toma o balbucio — o tateio — como método para sua própria experiência de deslocamento para Kuala Lumpur, no continente asiático. As pinturas abrem espaço para o desejo de registro do seu encontro com uma paisagem e contexto cultural diversos. O balbucio, como um sussurro, voz que recede em espanto, se volta à origem da pintura que busca capturar a essência da percepção, diante do impacto das transições que requerem recolhimento e adaptação.

Adaptação.

Absorção, síntese, conexão.

Correlação.

Os povos originários da Malásia são também guardiões da terra, das águas, da floresta. Encarnam eles mesmos as forças da natureza e de seus ciclos de criação e destruição. Goldstein vem procurando incorporar a síntese a partir da criação de simbologia de encontros, colisões e fricções.

O fundo da tela, como a parede da caverna, aponta para o gesto, para o traço a seguir. Do tateio surgem formas e grafias que ora lembram animais, ora corpos celestes, ora corpos que se movimentam ao luar. Por vezes, as formas parecem acidentes naturais da paisagem, que funcionavam como coordenadas geográficas para povos nômades que procuravam se recordar de regiões anteriormente habitadas para um dia voltar.

As cores surpreendem pela vivacidade e respiro, pela paleta distante do repertório imagético europeu de compreensão da arte rupestre. No entanto, as cores que as pinturas revelam incorporam a síntese que Kika Goldstein vive ao se deslocar para a Malásia e ser introduzida às tonalidades e pigmentos das inscrições nas cavernas da China, presentes na antiga rota da seda, em que o azul, o verde e o amarelo são abundantes. A luminosidade das cores de agora assume o primeiro plano ao invés de serem integradas ao preto cromático, preponderante na pesquisa anterior, quando investigava a cor preta como representativa de uma força maior, universal, invisível e indivisível. Luz e sombra aqui coexistem, uma depois da outra, uma dependente da outra, dado o movimento cíclico da natureza.

São Paulo, Inverno de 2024.

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