A opacidade das paisagens

Kika Goldstein

texto Mariana Leme

03.09 - 22.10.2022 Belo Horizonte

Nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria

— Susan Sontag, Contra a interpretação

Há um arranjo de flores no centro da galeria. Que nada mais é que um arranjo de flores, murchando lentamente ao longo da exposição. Assim como as naturezas-mortas, ele encarna a impermanência, a finitude e a fragilidade da vida material. Há pinturas na exposição de Kika Goldstein, que são pinturas: não se trata de retórica, mas de substância espessa, formas, cores e superfícies bem delimitadas. São, quem sabe, investigações sobre o lugar “anterior a toda teoria, quando a arte não precisava de justificativa”, para citar a continuação das palavras de Sontag, que abrem esse texto. 

As Vistas são os trabalhos mais antigos. Como método, a artista toma para si a imagem de rostos projetados na tela e, em papel translúcido, vai paulatinamente desconstruindo o que poderia ser um retrato, para transformá-lo em um conjunto de territórios. Transferidos para a tela e preenchidos de cor, os territórios tornam-se autônomos, criando relações internas que já não dependem do referencial. No entanto, como que numa provocação, ele continua lá. Vista Mandaio, por exemplo, é construída de azuis, ocres e laranjas num fundo arroxeado, com uma forma central ovalada e outras duas laterais. A da esquerda se conecta com o “ovo” por uma espécie de rio azul-escuro e a da direita se projeta para fora da tela, em duas extremidades finas. O ovo, na verdade, não é bem um ovo; assim como o rio não é um rio e não se pode ver o Mandaio do título. É pintura. O mesmo acontece com Vista Grace, em que tentamos — sem sucesso — encontrar uma paisagem ou algum indício de Grace. Parecem dunas, é verdade; os tons terrosos também podem se referir aos tons de pele, mas a obra não se deixa submeter à narrativa externa.

As pinturas de Goldstein são pinturas porque, silenciosamente, recusam explicações ou narrativas externas. Elas são opacas. E, na medida em que dialogam com a longa tradição ocidental da pintura a óleo, também recusam a ênfase que historicamente se deu ao conteúdo. Segundo Sontag, “o hábito de abordar a obra de arte para interpretá-la reforça a ilusão de que algo chamado conteúdo de uma obra de arte realmente existe.”  É como se a artista estivesse provocando o espectador a repensar alguns pressupostos há muito naturalizados: por que o conteúdo teria maior valor que a forma? Ou ainda: por que a retórica, o intelecto, seriam mais importantes que a matéria, o corpo, as sensações proporcionadas pela cor? 

Para formar um conjunto de quatro obras, expostas lado a lado, Goldstein revisita antigas colagens, em que imagens são formadas pela justaposição de formas recortadas, e as transforma em pintura. A primeira imagem está contida nos limites da tela sobre um fundo escuro como breu, um abismo. É como se a escuridão guardasse em si formas em potencial que se desdobram nos outros três trabalhos, reconfigurando-se para enfim se abrir numa espécie de cavidade, fenda cinza um tanto esmaecida — como as flores da entrada ficarão, com o passar do tempo. Mas, assim como em Vistas, somos traídos pela ilusão persistente de que existe “algo chamado conteúdo”. A impossibilidade de “ler” as pinturas como paisagens — seriam vistas aéreas, montanhas, cânions? — parece nos transportar, com algum desconforto, para o lugar “anterior a toda teoria”, como diria Sontag. E talvez o desconforto exista porque a teoria costuma nos dar alguma segurança frente ao desconhecido; ilusão de controle sobre a realidade material.

Dois trabalhos que lembram ondas parecem mimetizar um ao outro. É como se a intensidade dos vermelhos e roxos se transformassem em castanhos, na medida em que, quando as cores se misturam, elas tendem a formar marrons acinzentados. Mais uma vez, a pintura é matéria espessa. Finalmente, há alguns conjuntos de pequenos dípticos escuros, Paisagens noturnas que se assemelham a paisagens, mas que são, antes de mais nada, tinta a óleo e cera de abelha. O mesmo procedimento se repete em todos eles: à esquerda, a “paisagem” é formada pela justaposição de territórios bem delimitados, como nas Vistas. À direita, os “rios” são formados pela retirada de matéria que expõe a cor do fundo; sem os sulcos jamais saberíamos de sua existência. Os “rios”, portanto, não são rios, mas intervenções que deixam evidente a construção da obra. 

“Nenhum de nós”, diz Sontag, “poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria […]. A partir desse momento até o fim da consciência estamos comprometidos com a tarefa de compreender a arte.” Talvez as pinturas de Kika Goldstein, que são pinturas, possam nos oferecer algumas pistas. Desconfortáveis, talvez, porque não representam nada que lhes é externo e nos convidam a mobilizar outros sentidos, tão ou mais fundamentais que o intelecto. São pinturas opacas, quem sabe, como o fim da consciência. 

Mariana Leme

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