“Nó em pingo d’água” - Ana Elisa Gonçalves
08.07 - 02.09.2023
ArteFASAM Belo Horizonte
Nó em pingo d´água
Marina Câmara1
Aquele rio era
como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem.
Sabia da lama como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
João Cabral de Melo Neto, 1950.
I. Ana Elisa Gonçalves apresenta, na primeira exposição individual que a artista realiza na ArteFASAM Galeria de Belo Horizonte, as pinturas da série Nó dado. A série é fruto de uma pesquisa historiográfica que a artista realiza interrogando tanto os próprios arquivos familiares, quanto a escassa bibliografia que existe sobre o processo da incursão das mulheres na capoeira. O recorte da sua pesquisa é, no entanto, segundo a própria Elisa, a “prática física da capoeiragem”, ou seja, a ela interessa a presença da mulher não no coro, mas no jogo.
Em texto anterior sobre a produção da artista, Luciara Ribeiro já havia chamado nossa atenção para o caráter inquietante da pintura de Elisa e para o fato dela não se obrigar a ter compromisso com a noção tradicional de acabamento2 – um sendo, talvez, fruto do outro. Em outro escrito, observações próximas às de Luciara foram feitas também por Carina Maciel sobre o fato de Ana Elisa construir “um novo paradigma com o material, ao enterrar a pintura tradicional, pelo potencial mortífero da lama que, na pintura de Elisa, dá vida aos corpos3.”
Gostaria, então, de ecoar as escritoras, começando por desdobrar a questão da terra, citada por Carina Maciel. A terra onde Elisa enterraria as normas da pintura tradicional também é escavada pela artista, ora em sentido figurado, em busca dos vestígios históricos das origens da capoeira – que, ao contrário das tradições pictóricas, não sobreviveram –, ora na semelhança que a composição dos corpos pintados teria com esse elemento. Os corpos das capoeiristas que vemos na séria Nó dado têm tanto volume quanto movimentação. Um verso de uma cantiga do engolo4, primo africano da capoeira, desenha a cena dessa movimentação, cantando assim: “como o vento batendo na árvore, ela tem que se dobrar”5 . Se as mulheres jogando capoeira pintadas por Elisa nos dão sensação de tridimensionalidade é, provavelmente, porque as tintas à óleo ou acrílica misturadas por Elisa com encáustica fazem com que suas capoeiristas pareçam de barro – da lama sobre a qual um rio sabe, assim como sabe sobre uma mucosa e sobre uma mulher febril.
Sobre as figuras femininas que pinta, Elisa, em conversa que tivemos, me disse que além de “corpos de uma materialidade fluida como o barro do Jequitinhonha”, elas, ora têm cabelos brancos apenas esboçados e que são assim para que as cabeças estejam abertas e livres para receber e carregar a oralidade, e ora são carecas como símbolo de ruptura com a feminilidade compulsória e de um renascimento e recomeço.
II.
Da zebra não se pode tirar leite [como de uma vaca] com natchongwa,
A zebra não é pastada [vai aonde quer ir, e pontapeia!]6
Utomba Chindenga, 2011
Em texto inédito de autoria da artista, Elisa cita o Mestre Gato Góes: “As mulheres pretas, nos primórdios da capoeira enquanto prática de sobrevivência, geralmente ficam no coro dobrando as letras das músicas. Raras mulheres, eram ousadas e davam um nó em suas saias no meio das pernas para participar de jogos dentro da roda. Infelizmente, a maioria delas não tinham roupas íntimas. Então, por isso, as mulheres evitavam de jogar porque seria um constrangimento que suas partes se mostrassem no meio da roda.”
O relato do Mestre reflete de certo modo o que diz o professor turco Matthias Röhrig Assunção em seu artigo “Engolo e capoeira. Jogos de combate étnicos e diaspóricos no Atlântico Sul”7. Nesse texto, Assunção apresenta aquela que configura atualmente a principal narrativa afrocêntrica sobre as origens da capoeira, o engolo, chamado também de “dança da zebra”.
Assumindo que infelizmente há “ausência de descrições históricas” que comprovam os vínculos ancestrais diretos entre as práticas do engolo e da capoeira, a pesquisa de Assunção revela que essa insuficiência de comprovações é, por sua vez, fruto da falta de evidências a respeito da presença histórica dos nkhumbi no Brasil8, etnia do sudeste africano e cultura na qual a prática do engolo tinha papel central e estruturante. O engolo era dançado (e, em alguns casos, havia também incorporação) em situações como o efiko, ritual da puberdade feminina e de nubilidade. No efiko, as meninas iniciadas se encontravam com seus futuros maridos e ficavam noivas, funcionando, portanto, como um momento de exibição masculina. Os indícios do parentesco entre engolo e capoeira, no entanto, são diversos. Não há, por exemplo, registro sobre a participação de mulheres no engolo, para além de suas presenças no coro, exatamente como na capoeira do passado.
Interessa-me chamar atenção aqui para o fato de as letras e versos das cantigas, parte do engolo da qual a mulher estava autorizada a participar (para além da cerveja – macau – que faziam), serem hoje a fonte histórica mais viva através da qual ainda será possível seguir investigando tanto a centralidade da dança do engolo na cultura nhkumbi quanto outros laços entre ele e a capoeira, suprimindo assim, quem sabe, a insuficiência de descrições que os comprovem.
Algumas mulheres brasileiras não se contentaram, no entanto, em cantar os versos — por mais que essa prática cumpra hoje a função de vestígio histórico imprescindível. Elas, dando um nó em pingo d’água (como o rio de João Cabral, que não sabe de quase nada, mas sabe de tudo) burlaram a impossibilidade de participar dentro da roda em um movimento que, paradoxalmente, acabou por desatar aquilo que desde sempre as havia impedido de jogar.
III. Ana Elisa dedica à sua mãe, muito devota de Nossa Senhora Aparecida, algumas das decisões pictóricas assumidas na série Nó dado. Proclamada, por sua vez, Rainha e Padroeira do Brasil em 16 de julho de 1930 (data que curiosamente completará exatos 93 anos, dias depois da inauguração de “Nó em pingo d’água), Nossa Senhora Aparecida – “vestida de Sol” –, tem como emblema o dourado de sua coroa e dos ornamentos de seu manto, fato que levou a artista a optar, dentre as possibilidades de cores do chitão, tecido comumente encontrado em manifestações tradicionais brasileiras frequentadas por Elisa, pelo amarelo, homenageando assim a fé de sua família.
Por outro lado, é preciso termos em mente que Ana Elisa é uma artista pesquisadora, ciente da história da criminalização da capoeira9, incluída no Código Penal de 1890 como uma manobra de manutenção da escravatura que teoricamente havia sido abolida menos de dois anos antes: enquadrar os “capoeiras”, então sinônimo de vadios e “potencialmente perigosos”, permitia que se “remetesse cada vez mais indivíduos para trabalhos forçados”10.
Adotar o amarelo e o dourado em meio a pesquisa em curso que a artista empreende não nos parece, portanto, se encerrar no gesto de ecoar a fé familiar pois também se desdobra em algo próximo talvez daquilo que foi chamado pelo artista Maxwell Alexandre de “vaidade preta” enquanto um modo de se apropriar de símbolos – no caso de Maxwell, os cabelo loiros, e no caso de Elisa, o amarelo e o dourado – se posicionando assim contra as hierarquias despóticas que arbitrária e violentamente estabeleceram que tais símbolos seriam acessíveis apenas a alguns.
1 Professora Adjunta do Inst. de Artes da UFRGS; Curadora e crítica independente; Pós-doutora pela USP; Doutora em Artes pela EBA UFMG e período Sanduíche na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne; Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA; Tradutora de textos como Inobedientia, de Emanuele Coccia, e MARINO MARINI: do arcaísmo ao fim da forma (Pinacoteca de São Paulo e Fund. Iberê Camargo).
2Texto curatorial da autora para a exposição individual de Ana Elisa “Os rumos até aqui”, Galeria Centro Cultural SESI Minas FIEMG, 2022.
3Texto inédito da autora.
4“[…] se quisermos expressar o relacionamento em termos de parentesco, como os capoeiristas gostam de fazer, não devemos pensar no engolo como o ancestral da capoeira, o que seria anacrônico. Devemos pensar nas duas práticas como sendo localizadas na mesma geração — como sendo irmãos ou primos […]. Minha preferência seria a relação de “primos”, refletindo um grau crucial de diferença entre as duas práticas em termos de seu significado cultural” (ASSUNÇÃO, 2019).
5“O que eu vi do jogo de corpo do engolo e da kambangula é que as pessoas desfrutam aquele momento. Não é o movimento por si só, mas esse sorriso, essa coisa de esperar uma oportunidade, e vupe! E isso é o mesmo espírito que a gente vê também na capoeira. Muito interessante foi a forma como Kahani descreveu o engolo: como o vento batendo numa árvore, ela tem que se dobrar. Então, isso aí a gente vem falando na capoeira há muito tempo!” (MESTRE COBRA MANSA apud ASSUNÇÃO, 2019).
6Verso de canção do engolo. (Utomba Chindenga apud ASSUNÇÃO, 2019). Natchongwa é uma garça (Bubulcus ibis) que vive em simbiose com o gado.
7Agradeço ao professor Felipe Merker Castellani (UFPEL) pelas preciosas indicações bibliográficas.
8Flávio Gomes encontrou mais de uma dúzia de escravizados classificados como “muhumbe” em relações de fugitivos no Rio de Janeiro de 1810 a 1830 (Farias, Soares e Gomes, 2005, p. 37, tabela 3); e como esse é o nome com o qual os nkhumbi se identificam até hoje, há poucas dúvidas de que alguns de seus ancestrais de fato trabalharam como escravos nessa cidade nas primeiras décadas do século XIX — exatamente o período em que surgiram os primeiros registros da capoeira. Fonte original: FARIAS, Juliana Barreto; SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005 (ASSUNÇÃO, 2019).
9Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890) Capítulo XIII -- Dos vadios e capoeiras Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem.
10Soares, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Ed. da Unicamp, 2002.