“Saber de cor o silêncio” - Inauguração das galerias em SP

23.03 - 03.05.2024

ArteFASAM São Paulo

Saber de cor o silêncio

Não é circunstancial que as obras introdutórias desse recorte apresentado agora, a inaugurar um novo espaço em uma antiga região fabril de uma metrópole autofágica, tenha o sugestivo título de Passagens (2019), dentro de uma série intitulada Observações. O díptico retrata, com as dimensões discretas de 12 cm x 9 cm, dois ‘espaços-entre’, em edificações que não levam a um reconhecimento direto, nos interstícios de um modernismo em desmanche e a aceleração rumo a um urbanismo de não lugares. É uma produção pontual em fotografia de Ana Sant’Anna, artista radicada e nascida em Salvador, emergente como a maioria dos nomes representados pela ArteFASAM, de Belo Horizonte, que hoje celebra, ao lado da Mamute, de Porto Alegre, a relevante instalação definitiva em São Paulo – e numa região que atualmente, entre as gráficas, as mecânicas e os pequenos comércios e sobrados, também abriga numerosos ateliês, galerias, espaços alternativos e vibrantes agentes da arte contemporânea. Nesses novos fluxos, a opção pelo não ostensivo e por um rigor percebido não somente pela discreta escala e cromatismo é uma espécie de chave em Saber de cor o silêncio, mostra coletiva que apresenta trabalhos de 15 artistas.

Saber de cor o silêncio surge a partir de verso de Poema, presente em Alba (1983), livro fulcral de Orides Fontela (1940-1998). Até hoje avis rara das letras nacionais, a literata nascida em São João da Boa Vista, contemporânea uspiana de luminares como Antonio Candido (1918-2017) e Davi Arrigucci Jr., teve produção marcada pela severidade e pela não adesão a soluções fáceis, grosso modo. “Saber de cor o silêncio/ diamante e/ ou espelho/ o silêncio além/ do branco. Saber seu peso/ seu signo/ habitar sua estrela/ impiedosa.” 1, escreve Fontela no início de Poema. “Saber de cor o silêncio é criar o poema” 2, reflete com exatidão a filósofa Marilena Chaui, outra interlocutora de Fontela no cotidiano universitário.

Numa perspectiva da visualidade contemporânea, assim, a exposição traz com destaque produções pictóricas que trafegam pelo peculiar. A paulistana Gabriela Sacchetto esculpe, grava e pinta, numa espécie de pintura expandida, mas em campo de pequena monta, retratos de uma cidade que extrai do ordinário um lirismo que não se derrama nem ostenta. Em trabalhos como o instalativo Torre e as pinturas sobre madeira Clélia, Jaraguá e Portão branco, a poética mínima da artista requer cuidado do observador e, nesse mergulho em sentido de introversão, é quase um exercício de resistência num mundo de circulação maximizada. A poética da paraguaia radicada em SP Lilian Camelli guarda um aspecto lacunar e, em geral em telas também de reduzidas dimensões como La modista 4 e Yendo a la habitación, exibem sorrateiras presenças da figura humana, como se frisasse a invisibilidade do doméstico dentro de uma visada de uma arte mais oficial, por assim dizer. Realçando tais enfoques menores, também renova temáticas que poderiam estar desgastadas em demasia, como as naturezas-mortas dos vasos de flores (Flores con fondo verde).

Diana Motta transita pelo abstrato com uma práxis intuitiva e empregando de forma experimental materiais como a caseína em quadros de tamanhos distintos. Numa parede que guarda um recuo elogiável nesse novo espaço, as telas de maior escala da paulistana Julia Pereira e da gaúcha Camila Elis tem técnicas advindas de persistente labor de ateliê, e os elogiáveis resultados em variados âmbitos são evidentes, porém o deslumbre que podem gerar não é originário de ações apelativas e discursos novidadeiros. Na mesma parede, o grande desenho de Claudia Hamerski põe em relevo árvore da cidade natal da artista – Seberi, interior do RS. Com enorme habilidade técnica, a obra da artista maximiza elementos vestigiais e ignorados, como as ervas daninhas que sobrevivem imiscuídas nas franjas do urbano, por vezes em situação de ruína ou com função atual bastante diversa da original.

Pamela Zorn discute, por meio de uma pintura fragmentada e fresca, identidades e relações raciais no âmbito familiar. Os álbuns fotográficos podem servir de fonte, como no tríptico Autoficção, em que há recortes dentro de uma configuração típica do meio, além da utilização do vermelho como que a compor um gap de intensidade no conjunto. “Interesso-me também pelo lugar fronteiriço do mestiço” 3, afirma ela.

Carolina Colichio revolve as memórias urbanas e cria objetos híbridos, como em Escamas, da série Piratininga, em que elementos inusuais preenchem a superfície do concreto, entre eles conchas. Nessas reminiscências líquidas, quase como a empreender uma arqueologia do sensível, a pujança da natureza e o caótico do construído não se separam e formam um uno. A carioca Ana Hortides tem sua autoralidade criada a partir do doméstico como vetor poético, em que o dia a dia não ostensivo e nem midiático se mostra pleno de fecundidades não somente plásticas. A estranheza e a aridez dos tridimensionais, também empregando o concreto, dão a peças como O coro uma inusual familiaridade.

Mariana Fogaça, na série fotográfica Amazônia, utiliza a sobreposição também para reforçar a ideia do indissociável dueto homem-natureza. A complexidade da floresta ganha dados visuais e processuais, em que as imagens em papel algodão ganham pigmentação com urucum, fazendo com que a obra possua reais contornos de transformação contínua. Já o duo Ío, presente com uma fotografia, é uma verdadeira plataforma de projetos, em que as artes visuais servem de veículo para discussões lastreadas na filosofia, na biologia, na história da arte e na mitologia, entre outras áreas.

Saber de cor o silêncio se ancora de modo decisivo em artistas que tem a performance como meio vigoroso da própria atuação. Maíra Vaz Valente tem na água um elemento fundante de porção central da sua poética, tanto em variadas ações como no bidimensional Cartografias de uma extinção anunciada. Andressa Cantergiani parte de esculturas para ações performativas que unem artes têxteis e do corpo, em desdobramentos de pesquisa interdisciplinar intitulada EntreLaços. Thatiana Cardoso esgarça os limites dos campos em que o feminino é delimitado, como o doméstico e o afetivo, e embaralha significados de antigos pactos sociais e de costumes.

Logo, a partir da decisiva participação de 15 artistas com atuações e estratégias bastante distintas, a coletiva apresenta obras de arte que não fogem do rigor, do enigma e do singular. Registram um estado de espírito do hoje, não sem contradições, ambiguidades e conexões que podem se revelar novas ou intensas, marcando a saudável abertura de um espaço aberto à experimentação.  

Mario Gioia, março de 2024

1. FONTELA, Orides. Poesia Reunida. São Paulo, Cosac Naify e 7 Letras, 2006, p. 149.

2. CHAUI, Marilena. Orides e a filosofia. Revista Cult, Edição 301, jan.2024, p.38.

3. Entrevista com o autor por aplicativo de mensagem, março de 2024.

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